Love me Tender

Love me Tender

O dia estava pesaroso e nublado. Pesaroso por causa da saudade que a atormentava. Nublado por puro respeito à sua saudade.

Acordara ansiosa, tivera um pesadelo. Nele, seu amado a esnobava, exibia-lhe uma linda aliança que representava um compromisso com uma outra mulher, com quem desfilava diante dela, esbanjando extrema felicidade.

Finalmente despertara.

Apesar de nublado, fazia um calor sufocante. Tomou um pouco de ar e, ainda deitada em sua cama, telefonou para o trabalho dele. Ele era florista. Convivia com as flores, mas embora reconhecesse e admirasse suas delicadezas e extremas belezas, sabia que era passageiro. Não nascera para lidar com flores. Não como ofício. Não para sempre.

Ao ouvir a voz do amado do outro lado da linha, seu coração disparou com irreconhecida violência. Mal conseguir falar. Era ansiedade, saudade, medo e alívio, tudo junto diluído em seu sangue fervente, que o coração bombeava para todo o seu corpo, ainda sonolento e teso de pavor por conta do pesadelo que acabara de ter. 

Ele ficou feliz em ouvi-la. Sua voz sorria. Falou em saudade, em muita saudade.

Ao se despedirem ao telefone, ela já sabia: faria-lhe uma surpresa no trabalho. 

Era o último dia do ano e, por conta das escalas de trabalho, feriado e compromissos sociais, eles só se veriam alguns dias depois.

Levantou-se, tomou um banho demorado. Lavou seus cabelos que, espantosamente, cresceram muito nos últimos meses. Cuidou dos dentes, da pele, fez as unhas. Escolheu um esmalte vermelho, de tom bem fechado, quase vinho. Talvez fosse uma reverência de seu inconsciente à saudade e ao medo que sentia.

Escolheu um vestido azul marinho, quase preto, que arrematou com um cinto bem fininho, que marcava precisamente a sua cintura. Maquiou-se levemente (ele não gostava de vê-la muito maquiada), colocou sapatilhas e se perfumou. Foi, mui decidida, surpreender o seu amado, que falou-a em saudade e mais uma vez, recitou um dos versos do Love me Tender, a canção que se tornara oficialmente deles, antes mesmo que fossem um casal. Aliás, eles deviam à Love me Tender toda a felicidade que estavam vivendo.

Certo dia, quando estavam trabalhando e ainda não eram um casal (embora veladamente queriam ser), tocou Love me Tender na rádio da floricultura. Ela, apaixonada pelo Elvis, deu um gritinho de satisfação (mesmo não sendo a voz do Elvis que estivesse cantando naquele instante). O rapaz não perdeu tempo e disse a ela que sabia cantar Love me Tender tão bem quanto Elvis (se dissesse que sabia cantar melhor que o Elvis, correria um grande risco de parecer arrogante e perder a sua investida). Como a moça já estava fascinada e sentia-se cada dia mais atraída pelo florista, sorriu para ele e lhe disse para treinar, para que um dia cantasse para ela.

E foi assim que as suas intenções se consumaram. Dias depois eles foram a uma festa e ela, num dado momento, sussurrou-lhe que estava esperando que ele quitasse ali a sua dívida, referindo-se ao Love me Tender. Ele de pronto a compreendeu, a levou para um lugar silente, a abraçou e cantou baixinho em seu ouvido os primeiros versos de Love me Tender. Talvez ele não supunha a dimensão dos efeitos daquela música entrando em seu ouvido direito e retumbando direto em seu coração, que se emocionava. Ele estava a ganhando naquele instante. Não pela música em si, mas pela delicadeza tão rara que se revelava com sua atitude.

Depois disso não se separaram mais. Pelo menos não seus corações. Foram unidos pelo tal Love me Tender do Elvis e, em pouco tempo, levaram para o novo mundinho que passaram a construir alguns livros, outras músicas, filmes, cenas favoritas. Falavam da vida acontecendo, da própria existência. Falavam de poesia, de felicidade e de filosofia, sem tom de filosofia. Também falavam em silêncio, apenas com olhares profundos, apaixonados, brilhantes, cúmplices e dispostos a tudo para levar aquele amor adiante, quiçá para sempre.

Era nesse mundinho que ela pensava e sorria enquanto seguia para a floricultura. Ficava imaginando a alegria que ele sentiria ao vê-la _e no alívio que ela sentiria ao abraçá-lo fortemente.

Pois foi exatamente assim. Ele, surpreendido, mal acreditou na aparição dela ali, bem diante de seus olhos, arrumada especialmente para ele, que a abraçou com muita força, tirando dela (sem saber) toda a angústia que o pesadelo da noite anterior havia lhe invadido.

Passaram quase uma hora juntos. O céu, milagrosamente, se abriu. O Sol lhes brindou com sua majestosa presença e o céu estampou-se num azul lindíssimo.

Assim que eles se despediram, no entanto, o céu voltou a nublar e, antes mesmo de chegarem a suas casas, choveu.

À noite o ano acabou.

Não puderam se ver por causa dos tais compromissos sociais que ainda os separavam, mas seus corações estavam juntos, eram um só, estavam unidos no mesmo propósito de viverem juntos o novo ano que se descortinava e tantos outros que viessem.

À meia-noite ela mandou uma mensagem para ele, que a respondeu firmando esse pacto de vida. Sim, viveriam juntos todos os próximos anos de suas vidas, até chegarem aos 126, queriam isso mais que tudo!

Enquanto seu quarto se iluminava com os clarões dos fogos de artifício que saudavam o novo ano lá fora, ela pôs Love me Tender para tocar.

Não poderia começar o novo ano ouvindo outra música.

Comentários

Unknown disse…
Somente Ludmila Clio, com seu texto arrebatador de almas e corações, consegue me fazer parar no meio desta quinta-feira 27/02 para ouvir Love me Tender! Ai garota por que você é tão boa assim hein? Chega a ser ofensivo, sabia? Estou quase cortando os pulsos já! hahaha
Retribuo essa sensação maravilhosa ao ler seu texto (e ouvir a música) com toda minha saudade de você! Beijos no coração, minha escritora favorita!