Meus Olhos sem Filtro


Quando viajo sempre escolho a janela. Gosto daquelas grandes e sem divisórias, bons metros de vidro que se tornam um portal para meus olhos famintos.

Vou olhando a paisagem na estrada. O céu, a profusão de cores lindas que se dá no fim da tarde ou no começo da manhã. E se é noite, a vastidão do negro véu, às vezes salpicado de estrelas, às vezes interrompido pela lua ou às vezes, sublimemente negro, uníssono, imperativo.

Quando passo dentro das cidades, observo as fachadas das casas, os semblantes das pessoas, os cachorrinhos de rua e o desprezo a eles dispensado, algo que dói no meu peito.

Fico pensando em como deve ser morar naquela casa na beira do asfalto e que está cheia de roupa no varal. Fico pensando em quanto será que recebe um vendedor de amendoim e jujubas no ponto de ônibus em frente à escola do bairro. E também fico pensando que eu penso demais.

Meus olhos não têm filtro e isso golpeia meu coração. Porque eles têm visto muita coisa triste. Eles têm visto que, mesmo com tantos estabelecimentos abaixando as portas, a construção civil não para, e em cada cidade percorrida, eles têm visto um grande shopping ou prédios de salas comerciais sendo erigidos.

Eles veem meninos de rua, famílias inteiras debaixo de pontes fétidas e expostas a tudo, sobretudo ao frio _climático e humano.

Eles veem cartazes e muros pichados com slogans políticos, exaltando cidades e seus respectivos administradores. E ironicamente eles também veem ratos correndo entre os lixos jogados em frente a esses mesmos muros pichados estampando fé no futuro, otimismo no crescimento da comunidade local e exaltando a idoneidade de seus líderes.

Daí fiquei pensando que o mesmo céu que vejo através desse vidro quase que imperceptível não pode ser contemplado pelas milhares de pessoas que estão, nesse exato momento, na fila do transplante, à espera de um milagre. Esse mesmo ocaso lindo, que me emociona e chega a fazer minha pele doer tamanho arrepio, não pode ser visto pelos sem teto, que há muito já não são vistos por ninguém.

Enquanto erigem prédios novos e fazem promessas de empréstimos sem necessidade de comprovar renda, crianças continuam com fome nas escolas porque a verba foi desviada, famílias inteiras são despejadas de suas casas porque o provedor da casa está desempregado, adolescentes que trabalham de dia, à noite vão à escola para responder chamada.

E meus olhos sem filtro são inundados por uma desesperação arrasadora.

Eu não sou politizada tampouco uma intelectual social. Sou apenas a portadora de um par de olhos sem filtro que captam a beleza simples do cotidiano, mas que não se fecham para a feiura do caos causado pelo sistema.

Estamos todos exaustos, cansados, desanimados. O Congresso Nacional é uma piada pronta, mas a gente só sabe se indignar superficialmente, fazendo apagão às 19:00h para provar que a gente está de olho, descontente ou, denunciando nas redes sociais que Fulano votou sim e Beltrano votou não, como se isso mudasse alguma coisa.

E o céu lá fora continua tão magistral! E as pessoas continuam morrendo à espera de um rim. E o negro véu salpicado de estrelas está tão lindo! E os hospitais que nunca vão atender a população continuam sendo construídos. E as montanhas que formam desenhos minuciosos arrematando o horizonte refletem tão delicadamente o Sol! E nossas crianças continuam sem merenda, sem perspectiva. Tudo isso ao mesmo tempo.

E daqui, da janela de vidro quase imperceptível, olhando para essa aquarela de cores harmônicas no céu, eu fico pensando que quem menos sofre nesse mundo ainda são os cachorrinhos de rua, apesar de serem desprezados. 

Para eles ainda há uma chancezinha de passar alguém e lhes fazer um carinho.

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